Bom era na ditadura, quando não tinha corrupção. Ah, não?
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Bom era na ditadura, quando não tinha corrupção. Ah, não?


Bom era na ditadura, quando não tinha corrupção. Ah, não?
Um ponto de vista tortuoso negligencia valores essenciais para justificar preferência pelos anos de chumbo. O pior é que é uma visão errada, também: houve muitos escândalos no período dos generais presidentes
Tanques invadem as ruas do Rio, em 31 de março de 1964: como paladinos pretensiosos da moral, militares queriam “acabar com a subversão” e “combater a corrupção”
Elder Dias
“No tempo do militarismo é que era bom, pelo menos não tinha corrupção.” Quem não tropeçou nessa frase nos últimos anos ou não tem Facebook, ou não frequenta roda de bar nem salão de beleza, ou não recebe visita em casa. Em tempos de descoberta de escândalo em cima de escândalo em todos os Poderes e em cada uma das esferas de todos eles, tornou-se senso comum comparar o atual estado ético da sociedade brasileira — principalmente na questão público-política — ao da época em que os generais mandavam no País.

Uma visão obviamente caolha, ao negligenciar valores essenciais, como a liberdade de expressão, sufocada durante os anos de chumbo do regime. Mas, pior, uma visão errada também: a corrupção correu solta durante os anos de militarismo e os próprios comandantes que tomaram o poder prometendo acabar com a praga foram forçados a admitir que pouco (ou nada) poderiam fazer contra ela.

Ao assumir o poder após anos de tribulação, havia duas “bandeiras de luta” a que se comprometia o novo regime (o que, aliás, é curioso, pois ditadura não tem de dar satisfação a ninguém): uma era livrar o País do “mal do comunismo”; outra, combater a corrupção — o que, na verdade, não era nenhuma promessa inédita. Naquela que viria a ser a última eleição que o Brasil teria para presidente pelas próximas três décadas, o jingle do então candidato da conservadora UDN à Presidência, Jânio Quadros, virou um clássico das campanha: “Varre, varre, varre, varre, varre vassourinha/ Varre, varre a bandalheira/ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira/ Jânio Quadros é a esperança/ Desse povo abandonado/ Jânio Quadros é a esperança/ Desse povo abandonado...”

Claro, Jânio ganhou. E decepcionou. Assim como ganharia e decepcionaria Fernando Collor de Mello em 1989, depois de proclamado o “caçador de marajás” em uma indefectível capa da revista “Veja”. Ambos, Jânio e Collor, como intrépidos salvadores da pátria, fizeram crer que venceriam a corrupção. Como se fosse só estalar um dedo ou acionar uma lâmpada de Aladim. Ocorre que a corrupção nunca bateu asas e voou do Brasil. Pelo contrário, sentou praça com a comitiva de Pedro Álvares Cabral e gostou da terra. Apesar de não ser exclusividade tupiniquim, é tão endêmica — embora mais nociva — quanto o mosquito da dengue ou a cachaça. Poderia ser controlada, com doses anti-impunidade.

No hiato entre as duas eleições presidenciais, a turma verde-oliva avocou a prerrogativa de extinguir a aberração. E o “estalar de dedo” foi o execrado Ato Institucional nº 5 (AI-5), editado em 1968 e que se tornou o marco mais simbólico do que houve de pior no período ditatorial. Dando poderes extraordinários ao Presidente da República, suspendeu garantias e se sobrepôs à Constituição de 67 — já promulgada para servir ao regime militar, ressalte-se. Mas além das aberrações contra os direitos políticos e civis, o instrumento tinha também um item no mínimo pretensioso: seu Artigo 8º queria varrer a corrupção punindo os acusados com a perda de bens: “O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.”
“Fácil” como a Transamazônica

Um relato bem didático e sintético do que os militares fizeram para combater foi feito pelo historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e está no livro “Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar” (Record, 2001). Por exemplo, para executar o trabalho relativo ao tal Artigo 8º, foi criada a Comissão Geral de Investigações (CGI). Para vencer a vilã corrupção, seus membros passaram a atuar como super-heróis justiceiros por todo o País. Era como fazer a Rodovia Transamazônica: da mesma forma que seria “só” rasgar aquela mata com as máquinas do desenvolvimento, os paladinos da moralização ética precisariam “apenas” fazer cumprir aquele item do poderoso AI-5. Fácil.

Fácil até começar. Conforme relata o livro de Carlos Fico, para moralizar o país as 20 subcomissões da CGI tiveram de lidar com casos de corrupção tão diversos como o aumento de salários da magistratura e de membros do Tribunal de Contas do Paraná e o atraso de salários da rede municipal de ensino de São José do Mipibu (RN); o adubo superfaturado comprado pela Secretaria de Agri­cul­tura de Minas Gerais e a alta do preço da carne em Manaus; co­brança de taxas escolares indevidas no Espírito Santo e irregularidades na administração da Federação Baiana de Futebol.
Mas a população se envolveu. Assim como quando se multiplicou em “fiscais do Sarney” — o então presidente que, por ironia, se tornou um dos frutos mais viçosos que o período da ditadura ofereceria à política brasileira — pelo fim da inflação, acreditava que o fim da corrupção viria com a saga planejada pelos militares. “A força do discurso moral de combate à corrupção gerava simpatia em setores da sociedade, que encaminhavam, espontaneamente, denúncias à comissão”, relata Fico.

O problema é que os super-heróis do regime exorbitavam. Cometiam excessos variados e chegavam a se achar tão poderosos quanto a alta cúpula do governo, a ponto de criar atritos com diversos órgãos federais. Governadores se sentiram perseguidos.

Resultado de tudo: os militares acabaram se tornando prisioneiros da própria artimanha. Ainda no relato do historiador, em cinco anos (de 1968 a 1973) foram 1.153 processos. Destes, mil foram arquivados. Outros 58 viraram proposta de confisco e 41, alvo de decreto presidencial. Dez anos depois, a comissão era extinta, com o AI-5, pelo general-presidente Ernesto Geisel. Sem resultado concreto algum, ou porque os processos se mostravam mal fundamentados — e, então, vulneráveis a uma análise jurídica mais criteriosa — ou porque havia uma paralisação por conta de... injunções políticas. Ou seja, o mesmo motivo que, até hoje, continua impedindo a apuração e a punição de casos envolvendo grandes nomes do poder.
Cúpula do regime militar admitiu que corruptos se beneficiaram do regime



O presidente era Ernesto Geisel. E seu interlocutor, naquele dia, no prédio que abrigou o Ministério da Agricultura, era o almirante Faria Lima. A este, o comandante-em-chefe do Brasil admitiu, ao ser questionado se era mesmo hora de fazer a abertura política: “A corrupção nas Forças Armadas está tão grande que a única solução para o Brasil é fazer a abertura”, desabafou Geisel. Uma declaração fortíssima, registrada no livro “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura” (Record, 1999), do historiador Ronaldo Costa Couto, doutor pela Universidade de Sorbonne, em Paris.
 
Outra declaração, esta resgatada por Carlos Fico em seu livro “Como Eles Agiam: os Subterrâneos da Ditadura Militar”, mostra que os chefes do poder militar fizeram seu mea-culpa já no início do regime. “O problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”, admitiu o ministro Estevão Taurino de Resende, o primeiro presidente da Comissão Geral de Investigação (CGI), que caçava tanto os que considerava subversivos como os supostos corruptos nos primeiros anos do regime. Era ele que tinha de dar conta — conforme escreveu Armando Falcão, outro ministro, mas da Justiça, no governo Geisel, em seu  livro “Tudo a Declarar” (Nova Fronteira, 1989) — dessa parte da política de Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura civil-militar no Brasil, que tinha sido chefe do Estado-Maior do Exército nomeado pelo deposto João Goulart e se tornou um dos líderes do movimento golpista. 

No texto “Falso Moralismo”, publicado na “Revista de História” (2009), a cientista política Heloísa Murgel Starling, diz que não havia medida para coibir os desregramentos, já que a própria ditadura suprimia os limites a quem quer que se colocasse no alto do poder. “Havia privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e excessos.” O general Gleuber Vieira, em depoimento aos professores Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares, em 1994, publicado depois no livro “A Volta aos Quartéis — Memória Militar Sobre a Abertura” (Relume-Dumará, 329 páginas), diz que na ditadura “houve deslizes de que eu mesmo, na época, tomei conhecimento”, embora ressalte o período como “de austeridade como poucos na história republicana”.

É bem verdade que a atitude de parte dos militares pareceu ser genuína, apesar de ingênua, na busca da solução do drama da corrupção no País. Não contavam eles que alguns dos colegas de farda pudessem se envolver em casos — o que levava à paralisação de processos de apuração dos fatos, para não respingar na imagem idônea que precisava passar o regime. Se os generais presidentes não ficaram ricos, o mesmo não se pode dizer de muitos e muitos civis (e militares) que estiveram às bordas do poder. Fortunas foram erguidas durante os anos do “milagre econômico”; suspeitas de superfaturamento pairam até hoje sobre obras como a Ponte Rio–Niterói, ainda que não houvesse instrumentos tecnológicos para uma apuração mais acurada; e foram, ainda, muitos os episódios de corrupção que vazaram para a imprensa apesar de todo o fechamento da estrutura comunicacional, como os casos Luftalla (1977), Jorge Atalla (1979), Econômico (primeira parte, na década de 70) e Coroa Brastel (1985), entre vários outros. 

Por fim: para comprovar a existência da corrupção na ditadura, bastaria admitir que houve tortura e que tenha sido acobertada pelo regime. Para torturar, desfigurar corpos, mutilar outros e tirar vidas sem deixar margem para questionamentos, era preciso “legalizar” procedimentos. A tortura deixava de ser tortura com a anuência e cumplicidade de agentes dos diversos poderes (peritos, policiais, delegados, juízes, gestores, parlamentares etc.). Ou seja, o que uns faziam para justificar evasão de divisas, outros usavam para evasão de corpos. É “menor”, essa corrupção?

O sagrado direito de não precisar de super-herói

É um tanto estranho uma terra com mais de 500 anos nas costas viver uma democracia ainda recente. Mais do que isso, o atual é o mais longo período verdadeiramente democrático no Brasil. Como diria um ex-presidente, nunca antes na história deste País houve um tempo com tal qualidade de verdadeira democracia como agora. É tão democrático que se pode inclusive pedir a volta da ditadura, escrever sobre isso e postar nas redes sociais.
 
Tentem imaginar o inverso. Escrever, na época do general Emílio Garrastazu Médici umas poucas e boas sobre a tal Revolução de 64 e exigir a volta dos direitos políticos plenos e o fim do regime. E puxar uma convocação, via redes sociais, para uma passeata, ou ao menos um rolezinho, contra a turma fardada. Chega a ser surreal — e é mesmo.

A frase “bom era na época dos militares” carrega uma série de incongruências históricas e sociológicas, a tal ponto de não ser possível acreditar que alguém realmente pense que possa ser assim. Falar sobre “menos corrupção” apontando para a ditadura é como ignorar uma montanha de defeitos na antiga namorada para justificar uma birra com a atual por uma imperfeição que ambas carregam. 

O que incomoda, na verdade, é sabermos que temos uma democracia assim, imperfeita. Assim também era a democracia no começo dos anos 1960, quando havia a ascensão dos movimentos sociais juntamente com uma temperatura cada vez mais alta da Guerra Fria. Isso catalisou a saída dos militares dos quartéis para os palácios e retardou, em meio século, o progresso da democracia no Brasil: menos de 20 anos após sair do regime de exceção do Estado Novo, em 1945, o País voltava a ser tomado de assalto. 

A democracia é a pior forma de governo, sem contar todas as demais que já foram experimentadas, dizia o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. E na democracia brasileira que temos é preciso conviver com gente questionável que cresceu na política exatamente no período não democrático: assim foi com Antonio Carlos Magalhães, assim é com Paulo Maluf, José Sarney e tantos outros, que souberam jogar o jogo dos militares, cresceram durante o regime e entraram com muito poder na fase pós-ditadura, a ponto de distribuírem as cartas. A ponto de existir Pedrinhas no meio do caminho de toda uma Nação.

O problema do Brasil não é a democracia: é a corrupção. Melhor até: não é nem a corrupção — que existe em qualquer local do planeta —, mas a impunidade à corrupção. Pedir o retorno do militarismo como resposta à corrupção na democracia é o mesmo que ver o bode em cima do sofá da sala e tirar o sofá. E para combater a corrupção nada melhor do que instituições fortes. Ano a ano depois de mais uma redemocratização, elas estão sendo construídas e ajudando a estabelecer novos paradigmas. Foi assim que houve o impeachment de um presidente, a transição tranquila de governo para um ex-preso político e a condenação de parlamentares em um caso de corrupção. Nada disso foi perfeito, mas tudo foi melhor do que antes. Porque, desta vez, nada foi feito por super-heróis, por seres messiânicos, mas pelo que há de melhor em uma democracia: suas sagradas instituições, os poderes Legislativo, Executivo e Ju­diciário.

http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/bom-era-na-ditadura-quando-nao-tinha-corrupcao.-ah-nao



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