Ser historiador não é muito gratificante no Brasil. Aqueles que não têm a história como um simples hobby e se arriscam na profissão, seja por utopia, seja por amor, acabam tendo como única saída a sala de aula — com os salários aviltantes e condições de trabalho frustrantes que todos conhecemos. Mas, ao menos, em termos pessoais, lidar com essa apaixonante disciplina nos faz ter uma perspectiva da realidade muito mais profunda do que a média geral da população. Que, por sinal, é cada vez menos estimulada a dominar a sua própria história, e muito menos entender como ela funciona e pra que serve.
Quem lida com os fatos do passado pode chegar até a fazer projeções para os anos vindouros — não por acaso cada vez mais historiadores andam sendo chamados para explicar conflitos pelo mundo, como a crise da Venezuela ou o golpe na Ucrânia, usando o passado para predizer para onde vai o futuro.
O que me traz a uma questão brasileira do presente. Nossa total incapacidade de agregar aos nossos valores, os preceitos dos Direitos Humanos. A simples menção ao termo já remete imagens determinadas e frases prontas na cabeça de certos indivíduos: “direitos humanos são para defender bandidos!”. “Direitos humanos para humanos direitos!" "Onde estavam os direitos humanos quando o policial foi morto?!" "Se fosse com a sua mãe você não iria querer direitos humanos!”.
Como todo historiador sabe, olhando para a perspectiva da Longa Duração, essa conjuntura específica não tem como sobreviver por muito tempo. Faz parte do período de transição da sociedade brasileira, de uma fase imatura para outra mais desenvolvida, como um adolescente rebelde que vira um adulto responsável. Um dia, daqui a 30 ou 40 anos, certamente olharemos para trás e vamos achar ridículo o que a nossa sociedade de hoje pensava sobre Direitos Humanos. Mesmo assim, não deixa de causar estranheza até em nós mesmos, contemporâneos desses tempos, que alguém possa ser tão celerado a ponto de apoiar a violência institucionalizada e a vingança pessoal como formas de solucionar o problema da violência da sociedade (!). E que os defensores dos Direitos Humanos sofram todo tipo de depreciação por seu trabalho.
Mas não é tão difícil assim de entender. Imaginem os abolicionistas, no último quartel do século XIX, sendo ridicularizados pelos barões do café e os senhores de engenho. Estes possuíam muitos escravos e a abolição mexia diretamente nos seus negócios. Por serem a classe dominante, sua ideologia também era dominante, e portanto, se derramava sobre todas as classes sociais. Não seria muito difícil encontrar pessoas do povo, quiçá até negros, que corroboravam a causa da escravidão, sem nem saber ao certo por quê… Qualquer semelhança com os momentos atuais não é mera coincidência. O que o topo da pirâmide social pensa sobre Direitos Humanos — para negros, pobres e minorias, bem entendido — recai sobre a base. Afinal, a melhora da educação, do nível de vida e de renda também são direitos humanos, mas quem já tem tudo isso acha que a vida já está competitiva demais para dividir ainda mais o bolo…
Hoje em dia a escravidão é um aspecto horrendo da nossa história, praticamente (mas não totalmente) superada. Já não encontramos muitos defensores da escravidão por aí, bradando abertamente contra a alforria dos escravos. Analogamente, também um dia será difícil encontrar no Brasil alguém que seja contra o respeito aos princípios dos Direitos Humanos, conforme o Brasil vai avançando para dirimir as desigualdades. O Brasil é como uma maria-fumaça: grande, pesada e lenta, mas que apesar dos passageiros que tentam sabotá-lo, marcha inexoravelmente para a frente.
Mas tomar consciência desse fato não deve nos acomodar, nos tornar otimistas demais, achando que esses representantes do obscurantismo e do irracionalismo vão ceder terreno gratuitamente para os novos tempos. Saber que os dias sheherazadeanos da sociedade brasileira são apenas uma etapa rumo a uma sociedade mais plural e sem discriminações deve nos animar para combater o ranço do conservadorismo, e não esperar sentado sua superação. Se a escravidão acabou, é bom lembrar que mesmo até os dias de hoje, a luta nos negros por direitos ainda é imprescindível. Também a conquista dos Direitos Humanos deve ser uma vigília permanente.